Guerra-Peixe, "seu maestro"

Nestor de Hollanda Cavalcanti

    Comecei meus estudos musicais com Guerra-Peixe na Pro-Arte, em 1967. Depois de não passar pela prova de ditado musical, uma obra de Bartok que fazia todo mundo dançar e o Guerra se divertir, comecei a estudar o "suficiente de harmonia.".
    Não deu um mês de estudo e o Guerra me mandou compor uma peça para a apresentação dos alunos no final do ano. Tentei argumentar que não sabia nada, mas ele determinou:
    - Faça qualquer coisa. Uma peça pra flauta e violão...
    Fiz e mostrei pra ele. Acreditem: ele não mexeu numa nota. Somente disse uma palavra, palavra esta que juntamente com mais duas, eram permanentemente ditas ou escritas por ele para o aluno durante o curso:
    - Tá!
    As outras duas eram: "É" (que junto com o "Tá" significava "trabalho satisfatório", "bom", "muito bom" ou "ótimo") e "Re-fazer" (Esta última escrita na pauta com a nota ré). Aliás, viva re-fazendo meus exercícios...
    Larguei os estudos no final de 1969. Em novembro do ano seguinte, morre meu pai e, no dia seguinte ao seu enterro, ligo pro Guerra:
    - Maestro, quero voltar a estudar música. Mas, não posso pagar as aulas.
    - Apareça na sexta no museu (Museu da Imagem e do Som).
    Voltei a estudar. E tome de "Tá", "É" e "Re-fazer". Sempre com a predominância do último, é claro! E levava meus trabalhos, exercícios, composições pra ele ver, semanalmente. Não faltava às aulas, que não era besta.
    - Só fez isso? Dizia depois de ver a montanha de trabalhos que trazia.
    - O próximo...., falava com um duplo sentido explícito.
    Então, eu sentava na cadeira junto ao piano e ele começava a ver os trabalhos. A cinza do cigarro crescia e caia sobre seu colo. Às vezes, um cochilo de leve... E, no fim, olhando fixamente pra minha cara, com os olhos meio fechados por causa da fumaça do cigarro, dizia um dos seus três conceitos favoritos.
    Eu escrevia um bocado. E ai de mim se não fizesse assim. Dançava direitinho. O Guerra, com razão, não admitia aluno faltoso ou preguiçoso.
    Lembro-me que, ainda inexperiente, queria aprender orquestração. Via os colegas fazendo os trabalhos e ficava com uma certa inveja. Então comecei a "orquestrar" por conta própria meus exercícios de harmonia e os levei para serem apreciados.
    - Você está ficando um bocado saidinho... Compre o Casella, o Korsakov e o Álbum para a juventude do Schumann.
    Ele era um músico essencialmente prático. Suas aulas eram práticas. Exigia do aluno trabalho e dedicação. Tinha um método próprio de ensino, suas apostilas eram práticas, objetivas e visavam fazer com que o aluno escrevesse música. Fazia observaçõoes preciosas. Suas "dicas" eram determinantes. Uma vez, vendo a dificuldade dos alunos com o contraponto, mudou a maneira de ensinar a matéria.
    - Vamos começar pelo contraponto florido.
    Foi uma revolução. Abriu a mente de todo mundo. E logo, todos estavam brincando com o velho contraponto.
    Guerra-Peixe era um nacionalista, seguidor da estética de Mário de Andrade, Porém, nunca tentou me conduzir por este caminho ou por qualquer outro. Sempre fiz o que quis e levei os trabalhos sem nenhum receio pra ele ver. E o gordinho via tudo com atenção.
    Preocupado com a formação dos alunos, indicava livros, partituras e professores.
    - Procure a Esther (Esther Scliar).
    Estudei algum tempo com ele e depois a vida nos separou. Nos reencontramos anos depois. Estava na fase da gafieira. Tentei convencê-lo a escrever um livro sobre orquestração. Afinal, ele era um dos maiores orquestradores brasileiros e tinha uma prática fantástica. Porém, apesar dele me prometer que iria pensar no assunto, optou pela gafieira. Ele estava feliz assim. Respeitei, lamentando. Que obra não sairia!
    Mantive contato com ele até a sua morte que, curiosamente, foi no dia do meu aniversário. Devo muito a Guerra-Peixe, também conhecido como "seu maestro". Seu temperamento forte ofuscava sua generosidade.
    Seu Maestro! Minhas saudades...

    Rio de Janeiro, agosto de 2001

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